por: Paulo Torino
Quando cheguei o comandante já está sentado no hall do Hotel Everest, no centro de Porto Alegre e nem tive tempo de sorrir pois ele já saiu perguntando: - “como é correr Muccillo, naquele Fusca. Como são as corridas, ... eu tenho lido nos jornais”.
Sentei e começamos a conversar, como fazíamos há 30 anos...
“É diferente de tudo, não é como dirigir um carro. Os carros de corrida com tração dianteira são traiçoeiros, nunca andam em linha reta, são difíceis de guiar e perigosos para os inexperientes. Tudo é sempre muito rápido, barulhento e emocionante”...
Paulo Uster é meu amigo de infância, meu primeiro amigo. Nascemos no mesmo lugar, no mesmo dia e com o mesmo nome – PAULO, ele, é um ano mais velho, somos do dia 10 de novembro. Filho de um comerciante e mãe dona-de-casa, igual aos meus pais, morávamos todos, no mesmo edifício, na zona norte da capital gaúcha, Porto Alegre.
Na casa do início da rua onde vivíamos, morava um outro comandante, também chamado PAULO, ele voava nos Boeing 707 nos anos 60. Conhecia as grandes cidades da Europa, os Estados Unidos, o Japão e todos os lugares onde a VARIG voava. Era um super-herói para todos nós. Quando ele saia de casa, todos os moradores da rua queriam assistir seu embarque na caminhonete da VARIG, que vinha buscá-lo na porta da casa. Espiávamos pela janela, por trás dos muros, entre as árvores... queríamos ver tudo, o terno azul escuro impecável, a camisa branca e as quatro insígnias no ombro, o prendedor dourado do brasão da companhia brilhava no sol. No braço esquerdo, carregava o casaco de Piloto Aviador, o quepe levado debaixo do braço. Em frente do portão a esposa se despedia, sorrindo.
No último andar no nosso edifício tinha um outro comandante, também da VARIG, o pai do Moacir. Ele ainda voava nos DC-3 e quando chegava em casa, nunca saia do quarto. Ele era baixinho e muito calado. Das poucas vezes que fui na sua casa, lembro de ouvir o som de um toca-discos portátil, que rodava sem parar na cabeceira da cama. Eram aulas de inglês que a companhia oferecia para as tripulações e aviadores. Nunca consegui ouvir sua voz, se falava inglês e como gostava da aviação.
Nosso bairro era repleto de oficinas mecânicas e de carros de corrida. A escuderia do lendário piloto Catharino Andreatta, ficava em frente ao campo onde jogávamos bola todos os dias. A antiga sede da VARIG, com suas oficinas e o Aeroporto Salgado Filho, visitávamos de bicicleta. No caminho, parávamos para ver o SIMCA #78 do José Madrid, íamos até o posto de gasolina do Asmuz e eu corria de carinho de lomba, na Av. Dom Pedro II. Assim passávamos os dias de nossa infância.
Meu amigo comandante fez curso no Aeroclube de São Leopoldo-RS, onde eu fui reprovado no exame médico, devido uma pequena deficiência na perna esquerda, provocada pela paralisia infantil. Ele foi voar e eu fui em busca de outros sonhos: ser jornalista e piloto de corrida.
Nosso reencontro só foi possível, graças a uma comissária da VASP, para quem um dia entreguei meu telefone, no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Não a conhecia, mas sabia que meu amigo era comandante da companhia e que certamente aquela aeromoça saberia como encontra-lo.
Meses depois ele me ligou e voltamos a conversar como antigamente.
‘Me diz Muccillo... e antes que ele terminasse eu perguntei: – como é pilotar um 737, como é...
– “É tudo igual”, ele disse, com aquele sotaque de paulista-nordestino, - “uns tem o manche mais solto, outros, mais apertado, mas é tudo igual... Sou piloto instrutor, (1998) estou fazendo a rota Brasil-Argentina, treinando esses novos pilotos...
Disse para ele que havia começado em 1992. 'Tirei um empréstimo no banco e comprei o Fusca”....
- “E a primeira corrida”?
Foi em Tarumã, alguma semanas depois de terminar a Escola de Pilotagem. Nunca tinha andado num carro de corrida, nem de kart. Havia uma categoria de iniciantes dentro do campeonato gaúcho da Speed 1600 e estreamos em agosto, na prova válida pela 6ª etapa. Largaram 38 carros, eu larguei dos boxes...
Nosso carro tinha recebido um apelido ‘Taxi’ – era amarelo, alto na frente e muito baixo atrás. Foi terminado pelo José Pittini, meu parceiro e amigo. Dono de uma oficina mecânica, ele também fazia sua estreia naquela corrida.
O autódromo estava lotado, minha família estava nos boxes e eu só consegui entrar no carro minutos antes da largada. Quando ouvi a largada, sai em disparada, atrás daqueles carros que cruzavam na minha frente lá na Curva 1...
Apreendi a pilotar em 1992, na escolinha do professor Evaldo Quadrado, onde andávamos em um Fiat 147, só em quarta marcha, acelerando até no máximo 4 mil giros. E não adiantava tentar ir mais rápido, o professor sabia a velocidade, só ouvindo o barulho do motor. O curso durava quatro aulas, sempre às quartas-feiras, em Tarumã, nos finais de semana o curso acontecia em Guaporé.
A primeira aula do professor já era conhecida. Quadrado escolhia o melhor carro de propriedade dos alunos, que ele previamente selecionava olhando quando chegávamos no estacionamento. Naquele dia a ‘cadeira elétrica’ foi num FIAT TEMPRA, novo, e durou três voltas. Era tanta emoção que nem prestamos atenção no que ele dizia, afinal estamos dentro do autódromo, correndo na pista de Tarumã, com um dos melhores pilotos do Brasil ao volante. Os pneus rugiam e nós vibrávamos de felicidade.
Passada a emoção, a teoria, os ‘segredos’ da pilotagem eram explicados numa ‘rodinha’, com todos os alunos na frente da área de box. A teoria, tomadas de curva, tangência e saída de curva, eram explicados na segunda aula, no chão, junto da Curva 1. O professor riscava na terra e explicava como fazer uma volta com perfeição...
Na terceira aula, sentávamos no FIAT 147 e andávamos durante 10 voltas, sempre em quarta marcha, a 4 mil giros (120 km), quem tentava antar mais rápido, era denunciado pelo cronometro do professor e na volta seguinte já era chamado para parar.
Logo depois que sai dos boxes naquela primeira corrida, já conseguia ver os últimos colocados. Na Curva do Laço, já estava no ‘rabo’ do pelotão. Até hoje não sei se troquei de marcha, seguia os carros muito de perto, conseguia ver os enormes canos de descarga quase encostando na frente do Fusca. Fiz, o Laço, o Tala, a curva Oito a Nove e entrei na reta, já ao lado do penúltimo carro. No meio da reta, andando ao lado da mureta dos boxes, já havia ultrapassado três adversários, o quarto e quinto estavam na minha frente e antes que me aproximasse, trocaram de lado, atravessaram a reta para o lado oposto, uns 150 metros antes da Curva 1. Eu segui pisando fundo no acelerador, o ponteiro do conta-giros já passava das 7.500 rotações e emparelhei com os dois Fuscas, que andavam quase sobre a linha do acostamento. Mantive a trajetória, ainda no meio da pista, e mergulhei na Curva 1 com o pé no fundo do acelerador. No meio da curva já não via ninguém na minha frente e o Fusca começou a ‘sair’ de traseira, escorregando para o lado de fora da curva. Nunca havia passado por algo igual ao volante, nem nos dias de chuva, quando brincava com a PUMA, escorregando nas curvas. Sem controle, o Fusca girou no meio da curva e pisei com toda a força no freio. O Fusquinha amarelo rodopiou várias vezes e ‘estacionou’, parando a milímetros do guard-rail, já na saída da Curva 1. Quando a fumaceira baixou, permaneci sentado no carro, sem saber o que fazer. Logo em seguida apareceu uma bandeirinha, e me ajudou a sair. Na volta seguinte, todos passaram raspando pelo Fusca e eu olhava tudo aquilo sem saber o que dizer, só pensava que a corrida havia acabado na primeira corrida.
De volta aos boxes, a família chorava, minha irmã achava que eu tinha morrido e meu primo até hoje lembra: ‘foi um cavalo de aço’. No dia seguinte, a contracapa do Jornal Zero Hora era foto com a sequência da rodada. Um carro parado no acostamento, os 38 Fuscas ao fundo e um cachorro no meio da pista, olhando assustado para o meu Fusca, ou quem sabe, para mim.
Depois daquela corrida, melhoramos o carro, consegui um patrocínio e ganhava a verba em roupas. Corremos a primeira 12 Horas em Guaporé, treinamos muito e nos tornamos bons pilotos, correndo três anos na Copa Fusca e Speed 1600, no seu melhor período, contra grandes adversários.
Queria vencer e fui correr na equipe MOTTIN, na Copa Chevette, dentro do Marcas. Apreendi a acelerar um carro com pneus slick, fui vice-campeão no primeiro ano e vibrei com as vitórias nas 12 Horas (1996 e 1998 de Logus).
No final de 97, o Evaldo Quadrado comprou o Muffatão F2, chassis nº 005, que era do Aroldo Bauermann, carro que ele correu no brasileiro em 86...
A Fórmula nem chegou a ficar na oficina do Luciano Mottin. Aluguei e fui correr no gaúcho de Fórmula de 1998, onde eram aceitos os monopostos de chassis mais antigos. Com a preparação do Zé Laênio, venci nove corridas entre os carros da classe B, das 11 realizadas naquele ano. Fui o primeiro campeão classe B e levei para casa o prestigiado troféu Catharino Andreatta.
Andar de Fórmula é como correr de ‘carrinho de lomba’, as pedras saltam na viseira, e o vento sacode seu capacete e a velocidade transforma tudo ‘num túnel sem fim’ e o que vem pela frente e ‘engolido’ pelo olhar... Você senta no assoalho de alumínio, o encosto das costas é a proteção do tanque de combustível, bem amarrado, é como vestir uma armadura e voar no nível do asfalto. Uma sensação indescritível, só superada pelo kart 125cc, que conheci depois de parar de correr em 2005.
Nas 12 Horas de Tarumã, somos desafiados ao máximo, guiados pela luz para a escuridão, acelerando sobre o circuito conhecido e guiando nas referências que a noite nos oferece. O melhor tempo do nosso companheiro de equipe é o nosso maior inimigo, o cronômetro, na volta seguinte, a nossa salvação.
Nossos anjos da guarda são os mecânicos, os preparadores e a reza da namorada, esposa e companheira, que ilumina nossa pilotagem, vibrando e sofrendo da mureta dos boxes.
Bom voo Comandante, até outro dia!
Comandante Uster (de óculos), no comando do Boeing, 2017
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